14/10/03

Antes Que Elas Cresçam

"Há um período na vida que os pais vão ficando órfãos dos seus próprios filhos. É que as crianças crescem. Independente de nós, como árvores tagarelas, e pássaros estabanados elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estrupos dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem de repente. Um dia sentam-se perto de ti no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que sentes que não podes mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde é que andou crescendo aquela danadinha que tu não percebeste? Onde está aquele cheirinho de leite sobre a pele? Onde está a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços e o primeiro bibe do Infantário ou da Escola Primária?
Ela está a crescer num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E tu estás agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça mas apareça. Ali estão muitos pais ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme da sua geração: incomodas mochilas da moda nos ombros ou então com a t-shirt amarrada na cintura. Está quente, dizemos que vai estragar a t-shirt, mas sem resultado, é o emblema da geração.
Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados, depois do primeiro ou segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascenção, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar apesar dos golpes dos ventos, das colheitas das notícias, e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, observando e aprendendo com os nossos acertos e erros. Principalmente com os erros que esperamos não repitam.
Há um período em que os pais vão ficando orfãos dos próprios filhos.
Longe vai o momento em que a primeira menstruação foi recebida com o impacto de rosas vermelhas. Não voltaremos a apanhá-las nas portas das discotecas e das festas quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e da ginástica. Saíram do banco de trás e passaram para o volante das suas próprias vidas. Só nos resta dizer "bonne route, bonne route", como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha lhe oferece o primeiro jantar na casa dela.
Deveríamos ter ido mais à cama delas ao anoitecer para ouvirmos sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância e os adolescentes cobertores naquele quarto cheio de adesivos, posters, agendas coloridas e discos ensurdecedores. Não, não as levamos suficiente vezes ao Playcenter, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos os sorvetes e roupas que gostaríamos de ter comprado. Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afecto. No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, pedidos de sorvetes e sanduíches, cantorias infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais era um sofrimento, pois era impossível deixar os amigos e os primeiros namorados. Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas de repente, morriam de saudades daquelas "pestes".
Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e rezando muito (nessa hora se tinhamos desaprendido, reaprendemos a rezar) para que elas acertem nas escolhas em busca da felicidade. E que a conquistem do modo mais completo possível.
O jeito é esperar. A qualquer hora podem dar-nos netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afecto. Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam."

P.S.: É isso. A gente só aprende a ser filho depois que somos pais, só aprendemos a ser pais depois que somos avós...Enfim...só aprendemos a viver depois que já não temos mais vida...
E afinal...Nós ainda somos jovens demais!

(Affonso Romano de Sant'Anna)