Coisa mais linda
Uma das coisas que as mulheres nos ensinam - e só Deus sabe a somítica relutância com que partilham connosco o mínimo ensinamento acerca delas próprias! - é a olhar de perto para a maneira como as outras mulheres estão vestidas. A fazer como elas, enfim.
Bem perscrutado, o trajo de uma mulher pode indicar-nos - isto é, caso ainda queiramos saber - várias coisas que de outro modo não seriam evidentes. Os galifões, mais encantados com o próprio chauvinismo do que com o conhecimento em si, mantêm que o modo como uma mulher se veste mostra-nos o que ela tem para esconder.
Segundo esta escola de rua, se mostra as mamas é porque quer desviar a atenção das pernas; se mostra as pernas é porque está a encobrir criminosamente o rabo; se tem meias grossas é porque tem os tornozelos anafados à moda da Bairrada e se mostra a barriga está a pedir publicamente desculpa pelo não-comparecimento das mamas.
Mantêm assim estes caramelos, notoriamente falhos em granjear quaisquer simpatias femininas, que os optimistas vêem o que as mulheres mostram e contentam-se com isso; os pessimistas vêem o que elas escondem e só os realistas conseguem ver a parte visível em função da oculta, obtendo assim um retrato ideal da - para usar as palavras deles - «gaja toda nua».
Na verdade, não é nada disso. O que nos diz a escolha de roupa de uma mulher é muito mais importante: diz-nos a opinião que ela tem do corpo dela (o que raramente condiz com a nossa, geralmente mais generosa e tolerante) e, crucialmente, como ela menos se importa de se ver.
As mulheres passam por vaidosas mas, comparadas com os homens, que acham que estão sempre bem ou que são mesmo assim e pronto, são monumentos de exigência e de autocrítica, tais são os altíssimos padrões por que se regem.
Cada vez que uma mulher se veste dá-se uma guerra violenta, que não acata prisioneiros nem habeas corpus, entre ela, sozinha e aflita, e as forças negativas e avassaladoras do guarda-roupa
e do corpo dela, ambas tragicamente deficientes por definição.
Às vezes resigna-se; outras vezes afirma-se e, contra todos os cintos e acintes, triunfa gloriosamente. Amiúde deixa-se regimentar, aceitando uma solução comprovada, que não a deixa extática mas também não a deixa ficar mal.
Mas, quando se dedica a enfrentar corajosamente os Monstros - o corpo e a roupa que tem - e teima em lutar até ao fim, experimentando saias como Flaubert ensaiava vírgulas, sujeitando-se cruelmente às condições do mercado sem se deixar dominar por elas, muitas vezes emerge vitoriosa, completamente, linda de morrer, com a beleza da vitória a somar-se à beleza inata com que nasceu.
É por isso que, independentemente do carinho natural que se lhe tenha, é preciso render homenagem, de homem mesmo, à mulher bem vestida, seja ela de que idade, rendimento ou educação for.
Ela é vencedora de uma batalha contra si própria e os meios de que dispõe; lutando conforme leis inimaginavelmente austeras que ela própria ditou, muito para além das condições mínimas que a sociedade e a estética impuseram.
E está linda. E não sabe. E é a coisa mais linda que há.
- Miguel Esteves Cardoso -