Os meus recortes...
Todo o Tempo do Mundo
Há vinte anos que eu não sabia o que era acordar de manhã e não ter para onde ir. Não ter de sair de casa. Não ter uma reunião. Um almoço. A redacção. Acordar e não olhar para o espelho da casa de banho com a sensação incómoda de já estar atrasado e ainda ter a barba a escurecer-me a pele. Há vinte anos...
Normalmente todos temos sempre muito que fazer, e passamos os dias a lamentar a falta de tempo para nós próprios, para os filhos, para os DVD acumulados e os livros e os filmes. Além disso, estamos permanentemente em trânsito - do escritório para casa, do supermercado para o restaurante, da escola do filho para o jantar de família.
Um dos passatempos favoritos da raça humana, e particularmente da portuguesa, é o queixume. Eu também me queixava, mesmo quando não tinha razões para me queixar. Socialmente, era suposto responder à questão "então, muito trabalho?" com um suado e difícil "sabes lá, isto é uma vida de loucos". Nem sempre foi, sejamos honestos - terá sido quando tinha de ser, foi tranquila em muitas ocasiões. Mas eu nunca me desmanchei: "uff, isto é de malucos, um gajo nem tem tempo sequer para respirar", e lá seguia de passo estugado e sorriso apressado.
Todo o Tempo do Mundo
Há vinte anos que eu não sabia o que era acordar de manhã e não ter para onde ir. Não ter de sair de casa. Não ter uma reunião. Um almoço. A redacção. Acordar e não olhar para o espelho da casa de banho com a sensação incómoda de já estar atrasado e ainda ter a barba a escurecer-me a pele. Há vinte anos...
Normalmente todos temos sempre muito que fazer, e passamos os dias a lamentar a falta de tempo para nós próprios, para os filhos, para os DVD acumulados e os livros e os filmes. Além disso, estamos permanentemente em trânsito - do escritório para casa, do supermercado para o restaurante, da escola do filho para o jantar de família.
Um dos passatempos favoritos da raça humana, e particularmente da portuguesa, é o queixume. Eu também me queixava, mesmo quando não tinha razões para me queixar. Socialmente, era suposto responder à questão "então, muito trabalho?" com um suado e difícil "sabes lá, isto é uma vida de loucos". Nem sempre foi, sejamos honestos - terá sido quando tinha de ser, foi tranquila em muitas ocasiões. Mas eu nunca me desmanchei: "uff, isto é de malucos, um gajo nem tem tempo sequer para respirar", e lá seguia de passo estugado e sorriso apressado.
Até que no dia 6 de Janeiro de 2006, e sabendo antecipadamente que tal ía ocorrer, mas sem ter o cuidado de me preparar previamente para a mudança, passei subitamente a ter tempo. A não ter para onde ir quando acordo de manhã. A ter que fazer sem ter que ir. A ter trabalho sem me sentir trabalhador.
Decidi nesse instante abandonar o discurso padrão - e descobri que as pessoas com quem me cruzava ficavam sem palavras, atrapalhadas mesmo, quando à pergunta sacramental eu respondia um suave "não, estou com muito pouco trabalho, na verdade quase nada para fazer...".Olhavam-se como se eu tivesse uma doença grave. Nem sei por que não fugiam, porque estava inscrito nas suas caras um pânico terrível. Esperariam de seguida que desatasse a chorar ou lhes pedisse emprego? Dinheiro? Não sei. Acho sinceramente que não quero saber.
Resumindo, passei a ter mesmo tempo livre. Num primeiro momento, espreguicei-me dias a fio. Criei a rotina diária de ir tomar café às Amoreiras, comprar os jornais e voltar para casa para os ler. Uma vez por semana, El Corte Inglés. Uma vez por semana, FNAC do Chiado. Uma vez de quinze em quinze dias, Ikea. Tratar dos dentes, processo moroso tantas vezes adiado.Deixei de fumar. Preparar os programas de rádio com tempo - cronometrar canções, como nos anos oitenta, alinhar textos até ao limite sonoro da voz do cantor que se segue, rigor e divertimento em doses generosas.
Mas passaram dois meses e comecei a fartar-me da vida assim, livre e descontraída. Achava, na presunção curricular de quem anda nisto há muitos anos, que ía receber duzentos convites para novos projectos, programas de televisão, jornais e revistas. Então acordei - tipo o meu filho a esgaçar um "Heeelllloooooo!" - e percebi que isso não ía ocorrer. Era melhor virar-me. Ou aproveitar. Acreditar. Ou mudar. Houve mais coisas desagradáveis na minha vida sobre as quais não quero falar agora - mas a verdade é que quando dei por ele (pelo tempo, é bom de ver...), estávamos em Agosto e eu a pensar no que fazer. Já tinha deixado de fumar.
E depois o ano, subitamente, acabou.
A verdade é só esta, por pior que possa ser: passei 2006 a pensar no que fazer com o tempo todo de que disponho. Outro livro com crónicas?Um livro sobre a experiências de abandonar o mais fiel dos meus amores, três maços de cigarros por dia e uma relação intima de trinta anos? A minha revistam, finalmente? Um restaurante, amava ter um restaurante. Um bar na praia. Uma casa na Comporta e depois um restaurante e bar na praia. Uma editora de livros - aquela editora que eu tinha pensado há dois anos mas não fiz porque não tinha tempo. Ou uma editora que tivesse um restaurante e editasse uma revista?
... Agora o ano mudou, Janeiro vai alto, Fevereiro é mais que certo e, além do livro que nasce por entre relatos estranhos sobre este processo delicado que é deixar um vício, nada mais acontece. Navego por entre blogues para diariamente contar na rádio o palpitar desse novo meio de comunicação, escrevo crónicas e entrevisto pessoas. A vida escorre-se-me por entre os dedos das mãos e eu penso na terrível injustiça que cometo sobre a existência: quando não tinha tempo para tudo o que precisava de tempo, eu queixava-me e desculpava-me com o tempo. Agora, que o tenho e posso aproveitar, procuro perdê-lo. Para de novo me desculpar com ele.
Em breve vou certamente deixar de ter tempo. Sou um optimista, claro. Por isso, tudo voltará à normalidade e serei de novo mais um entre tantos. Como sempre. Que tristeza, não é?
- Pedro Rolo Duarte / Atlântico -