Depois de ler "O Independente", de fio a pavio, e só mesmo por coincidência - embora como ontem aqui disse, gosto de o ler - destaco aqui o artigo de Miguel Esteves Cardoso, na última página. Talvez porque foi o primeiro neste semanário e são dele as últimas palavras.
Diz assim:
Mal
Para o Paulo
Com que então são estas as últimas palavras que vou escrever no meu jornal. Que miseráveis são. E que mal que ficam. Mal. Mas têm de contar o que podem, porque nada pode ficar para a semana. Ou para outra semana. Porque esta é a última semana que sai "O Independente".
Sim. Está mal. Mal.
A felicidade é um raio de uma sementeira que, uma vez plantada, nunca mais pára de dar fruto. É pena o fruto ser um veneno tão grande, sem antídoto, sem fim.
É pena o fruto ser a saudade, o abatimento, e o desespero na versão mais comezinha e mais fatal, de já não haver esperança, de já não valer a pena esperar, por maior que a pena possa ser e por muitos (e bons, e pacientes) que haja, dispostos a suportá-la.
Mas a felicidade é nisto que dá, mais tarde ou mais cedo, mas sempre cedo de mais. Mesmo quando é muito tarde, dá em tristeza e saudade, e noutras coisas não tão bonitas de se dizer, mas que por isso mesmo, por essa fealdade humana, custam mais a sentir e são mais solitárias e difíceis de partilhar.
Em cada um que trabalhou aqui fica um luto particular, só dele, só dela, diferente do luto grande que a todos magoa - um luto não menos grande, tão feito de tudo o que fez, como de tudo o que não pôde fazer, tão incapaz de distinguir cada uma das pequenas lutas, ganhas ou perdidas, da grande que hoje perdemos de vez.
Fui, fomos muito felizes aqui n'O Independente, dia após letra após riso após vida após dia. E, nos momentos mais felizes de todos, não foi atrás das páginas que essas felicidades se escondiam. Não se escondiam. Exibiam-se em cima delas: estavam lá escritas. Viam-se.
Liam-se. Não havia esconderijos. Estava tudo à mostra. Era lindo.
A felicidade é uma língua rara, quase morta. Mas, bem conversada e paginada, volta à vida e até se deixa escrever, quando a deontologia está de costas e a ontologia, oportunista, manda-a foder.
E deixa-se fotografar. E ilustrar. E nós escrevemo-la e fotografámo-la e ilustrámo-la aqui, de vez em quando, quando tivemos sorte, quando tudo sorria e era só cerejinhas.
Hoje a cerejeira vem abaixo e toda essa doçura amarga e apodrece na alma. Há muito para amargar. Há muito para apodrecer. Se a alegria não tivesse sido tão grande, talvez se pudesse esquecer; talvez se pudesse destilar; talvez se pudesse engarrafar e depois beber. Talvez pudéssemos embebedarmo-nos todos juntos mais uma vez. Mas foi. Foi uma alegria muito grande. E agora é preciso pagar em dor e saudade; sofrer sem saber ler nem escrever - e sem ao menos ter o jornal nas mãos, todas as sextas-feiras, para consolar. Não é bom.
É escusado fingir que há um lado bom. Não há um lado bom. Não eram ginjas. Não eram ambíguas ou agridoces: eram cerejinhas. Eram luzidias. Não dão para fazer ginjinha. De nada servem as aguardentes.
Os jornais são feitos para o dia em que saem. Não duram. Não ficam.
Ainda não estão acabados. É por isso que voltam todas as semanas, todos os dias. "O Independente" já não vai voltar. "O Independente" já não é um jornal.
Não se diga que não faz mal. Faz mal.
Faz sim.
- Miguel Esteves Cardoso / O Independente em 01/09/2006 -