Ontem andei a dar uma volta pelo meu baú de recordações. Encontrei tantas! Mais do que poderia imaginar quando o abri. Entre papeis amarelecidos, fotos de que já não me lembrava, entre sorrisos e algumas lágrimas nos olhos encontrei estas palavras, sobre Moçambique, retiradas do livro de Jorge Jardim - Moçambique Terra Queimada - que li há já uns anos.
"A queimada africana é imparável e assustadora.
Começa no capim seco que arde em altas labaredas. Corre veloz quando o vento sopra em seu favor. Domina os tandos e assalta as florestas, galgando a encosta das montanhas.
A queimada, esse festival africano do fogo, prolonga-se durante dias e chega a durar semanas. Vista de longe, pela noite, engana fácilmente os olhos pouco feitos em reconhece-la. Toma contornos aparentes de grande cidade e parece pontuar sobre a terra a presença civilizadora do homem. Na verdade, porém, é quase sempre consequência de descuido ou fruto de hábitos ancestrais mantidos em tradição milenária.
É bela a sua corrida infatigável. É terrivel na força que desencadeia. As árvores torcem-se, os animais fogem quanto podem e o fumo eleva-se em barreira espessa que tolda a vista e sufoca a garganta.
Mas por muito que alastre e por mais que se erga, acaba sempre por extinguir-se. Os homens é que raro sabem como dominá-la. Só os velhos, donos da ciência aprendida no mato, a encaram sem temor. Esses sabem que a queimada tem força que não dura. Brilha e queima, mas apaga-se. Depois surgem mais fecundas as machambas naquela terra que oculta tesouros. O capim tenro nasce viçoso quando as cinzas se dispersam e regressa nova vida no ciclo infindável que prossegue. Até as árvores rejuvenescem libertas dos ramos secos e inúteis que o fogo carbonizou. É assim! Foi sempre assim! E continuará a ser sempre assim a grande queimada africana.
Só há perigo e se joga o drama, quando homens que vêm de longe - e por isso se consideram mais civilizados - ateiam o fogo para desvendarem a selva que desconhecem ou para se protegerem dos medos que os assaltam. No refletir nocturno dos olhos da gazela julgam adivinhar a proximidade agressiva do leão. Fazem crepitar o lume, que não dominam, e depois assustam-se quando a África lhes responde com a força mágica que desencadearam.
Então, até a terra arde.
Julgando tudo saberem, só por nada terem aprendido, esses homens sem cor assistem impotentes à destruição que provocaram. Não acertam em saber de que lado está o vento e tudo tentam explicar, desculpando-se confusamente, para fugirem apressados do braseiro. Atrás deles deixam a terra queimada, e abandonam as vitimas inocentes que a surpresa apanhou desprevenidas.
Essa grande queimada, feita fora do tempo, nada tem de africana, mesmo quando em África a ateiam. Dessa, até os sábios velhos do mato têm medo. Essa queima as raízes, faz arder a terra e não permite que o capim espontâneo volte a nascer.
Quem ali viveu intensamente longos anos, e ali deixou a alma presa ao feitiço que inegávelmente existe, não pode esquecer a imagem dessa grande queimada da descolonização, que não foi mais do que fogo posto por mãos ignorantes e criminosas. Mãos de gente que não pertencia à África. Mas as dores tiveram que ser sofridas, sem culpa, pelos africanos de todas as raças, atingidas pela mais monstruosa traição que naquelas terras se conheceu. Essa queimada, desencadeada por incendiários, também acabará por apagar-se. Na história que os velhos irão repetir, em torno da fogueira que em cada noite se renova, ficará apenas a lembrança dessa horrivél tragédia. Lição para todos à custa do sofrimento de tantos. Lição para os jovens aprenderem e que os filhos que haverão de nascer, recordarem - para que isso não possa voltar a acontecer - que os homens que atiçaram essa queimada, não tinham cor que os distinguisse. Mas sempre repetirão que não eram homens de África.
Dispersas as cinzas, reparadas as destruições e revolvida a terra queimada, nela voltará a reverdecer a vida que nem os séculos puderam abafar. Os homens serão capazes de encontrar a felicidade que ambicionavam. Em muitos horizontes, em novas formulas de convivio e sempre no autêntico estilo africano. Mesmo sobre as ruinas. Mesmo sobre a terra queimada.
O chão fecundo, as florestas centenárias, os rios sem margens e o oceano de mil cores, esperarão as gentes que se foram, para que de novo venham unir-se ás gentes que ficaram. E todos juntos reconstruirão a África nova.
Creio que assim haverá de ser, sem que ninguém atente na cor da pele para melhor se ver a cor da alma.
Em África tudo tem cor mas nada tem uma só cor. Nem os rios, nem as montanhas, nem o mar, nem os animais da selva, nem as terras, e nem os homens.
Só o céu conserva sempre o mesmo azul ainda quando nuvens passageiras o ocultem.
Para esse insondável infinito se erguem olhos esperançados, buscando nele alivio para o drama deixado por homens que de África nada sabiam.
Homens que fizeram de Moçambique a Terra Queimada, que tardará anos em voltar a ser fecunda.
Homens que a África terá de esquecer para, depois, lhes poder perdoar."
- Jorge Jardim -
Nasci em Lourenço Marques e vivi uma parte da minha adolescência em Moçambique. Para que se saiba, eu amo e respeito esta terra onde vivo e que me acolheu. Mas o meu coração pertence à terra que meu viu nascer e que não consigo esquecer um único dia da minha vida, apesar da distância e dos anos que vão passando. Já são tantos!
África é assim. Prende, apodera-se de nós, para sempre.