NOVAS COISAS DE SEMPRE
Os países, para além dos padrões lançados às margens recém-descobertas, dos acordos e contratos entre governantes e das linhas teóricas traçadas na tortuosidade dos mapas, são essencialmente no começo a obra de um punhado de homens que consumaram a posse pela coragem e força de vontade na luta contra o desconhecido. Temos os bandeirantes no Brasil, os pesquísadores do ouro e os conquistadores do «Far-West» americano, os Boers na África do Sul, os pioneiros que em todo o mundo se lançaram à descoberta e reconquista de terras já suas, selvagens, incultas e inóspitas, metendo ombros à árdua tarefa de concretizar e selar a posse, na busca de promessas de riqueza e fecundidade.
Cada grão de terra, uma gota de suor e um acto de fé.
Moçambique teve os seus pioneiros e desbravadores, homens cuja história é quase totalmente ignorada. Eu tive a sorte de conhecer um desses homens (os outros que me perdoem).
Foi no Gurué. Prefiro Gurué a Vila Junqueiro. Gurué, um nome que canta, como as suas quedas de água na rocha bruta da montanha.
Uma casa de terra batida, sem alicerces nem infra-estruturas mas com uma inesperada grandiosidade, construida pela força de vontade na ausência de quaisquer ajudas ou conselhos técnicos, predestinada a cair mas milagrosa e orgulhosamente de pé, ao fim de cinquenta anos de existência. Rodeada de velhíssimos eucaliptos e carvalhos que parecem sentinelas adormecidas no tempo. Pousada a centenas de metros de altura e virada para o vale que se perde em verde na distância. Como que erguida na calma certeza do raiar do sol em cada manhã.
Para trás, contra a serra, as capoeiras, as flores e os pássaros. E um criado...rendeiro. Um negro grande e sólido, já não muito novo, sentado num banco baixo, à sombra das árvores e na chilreada dos pássaros, a fazer croché. A renda que se desenrolou ao longo dos anos, para o bragal da casa, o enxoval do casamento, o berço dos filhos, a expectativa dos netos. (Este flagrante contraste com os nossos ridiculos preconceitos machistas ocidentais, sobretudo latinos, fez-me sorrir). Um homem a fazer renda. Não me pareceu menos homem por isso.
Nos primeiros momentos de entrada na sala, vasta e com um pé direito alto, de encontro à tristeza de um luto recente, a morte da dona da casa, fez-se um silêncio embaraçado, um grupo de gente nova e um homem envelhecido pela doença e pelo desgosto.
Fui ter com ele à janela, aquela indescritivel janela aberta sobre as mil pinceladas de verde dos jardins suspensos do chá, o verde-claro em que os rebentos cresciam, o verde-escuro onde as folhas tenras já tinham sido colhidas, os grupos de trabablhadores com os tipicos cestos às costas, estátuas belas e seminuas de cobre reluzente de suor no reflectir do sol que já descia no horizonte, as nuvens vestidas de arco-íris, sinfonia vibrante de cores, do rosa ao cor de fogo, do branco de neve ao amarelo ouro, no fundo turquesa daquele céu africano. Africano?...As montanhas abruptas e erguidas em volta lembravam alpes suíços ali colocados por engano, em terras de África. E todo esse mar de verde aos nossos pés, cortado por longas e assimétricas filas de acácias menstruadas, no sangue vermelho-vivo da sua plena floração.
Os países, para além dos padrões lançados às margens recém-descobertas, dos acordos e contratos entre governantes e das linhas teóricas traçadas na tortuosidade dos mapas, são essencialmente no começo a obra de um punhado de homens que consumaram a posse pela coragem e força de vontade na luta contra o desconhecido. Temos os bandeirantes no Brasil, os pesquísadores do ouro e os conquistadores do «Far-West» americano, os Boers na África do Sul, os pioneiros que em todo o mundo se lançaram à descoberta e reconquista de terras já suas, selvagens, incultas e inóspitas, metendo ombros à árdua tarefa de concretizar e selar a posse, na busca de promessas de riqueza e fecundidade.
Cada grão de terra, uma gota de suor e um acto de fé.
Moçambique teve os seus pioneiros e desbravadores, homens cuja história é quase totalmente ignorada. Eu tive a sorte de conhecer um desses homens (os outros que me perdoem).
Foi no Gurué. Prefiro Gurué a Vila Junqueiro. Gurué, um nome que canta, como as suas quedas de água na rocha bruta da montanha.
Uma casa de terra batida, sem alicerces nem infra-estruturas mas com uma inesperada grandiosidade, construida pela força de vontade na ausência de quaisquer ajudas ou conselhos técnicos, predestinada a cair mas milagrosa e orgulhosamente de pé, ao fim de cinquenta anos de existência. Rodeada de velhíssimos eucaliptos e carvalhos que parecem sentinelas adormecidas no tempo. Pousada a centenas de metros de altura e virada para o vale que se perde em verde na distância. Como que erguida na calma certeza do raiar do sol em cada manhã.
Para trás, contra a serra, as capoeiras, as flores e os pássaros. E um criado...rendeiro. Um negro grande e sólido, já não muito novo, sentado num banco baixo, à sombra das árvores e na chilreada dos pássaros, a fazer croché. A renda que se desenrolou ao longo dos anos, para o bragal da casa, o enxoval do casamento, o berço dos filhos, a expectativa dos netos. (Este flagrante contraste com os nossos ridiculos preconceitos machistas ocidentais, sobretudo latinos, fez-me sorrir). Um homem a fazer renda. Não me pareceu menos homem por isso.
Nos primeiros momentos de entrada na sala, vasta e com um pé direito alto, de encontro à tristeza de um luto recente, a morte da dona da casa, fez-se um silêncio embaraçado, um grupo de gente nova e um homem envelhecido pela doença e pelo desgosto.
Fui ter com ele à janela, aquela indescritivel janela aberta sobre as mil pinceladas de verde dos jardins suspensos do chá, o verde-claro em que os rebentos cresciam, o verde-escuro onde as folhas tenras já tinham sido colhidas, os grupos de trabablhadores com os tipicos cestos às costas, estátuas belas e seminuas de cobre reluzente de suor no reflectir do sol que já descia no horizonte, as nuvens vestidas de arco-íris, sinfonia vibrante de cores, do rosa ao cor de fogo, do branco de neve ao amarelo ouro, no fundo turquesa daquele céu africano. Africano?...As montanhas abruptas e erguidas em volta lembravam alpes suíços ali colocados por engano, em terras de África. E todo esse mar de verde aos nossos pés, cortado por longas e assimétricas filas de acácias menstruadas, no sangue vermelho-vivo da sua plena floração.
E com este pano de fundo, ele falou. Com a maior simplicidade contou como ele e dois amigos tinham arrancado cada palmo de terra à caça grossa e ao capim para plantar o chá até onde o clima de altitude o permitira. Longos anos de esforço. Trabalho duro e sem descanso. O fruto de uma vida. Onde o amor àquela terra crescera e criara raízes em cada pé de chá que fora, um a um, plantado com aquelas mesmas mãos que eu via à minha frente estremecendo de emoção na memória tão recente do passado. A ída à sua aldeia perdida em Trás-os-Montes para casar com a noiva predestinada. O amor que os unira, os filhos que nasceram e morreram dos quais apenas um sobreviveu, as alegrias e os fracassos de uma luta sem tréguas. Mas uma luta compensadora, com frutos à vista. A morte da mulher-pioneira, companheira fiel e constante de uma obra começada. E espalhados pelas serranias, como tive ocasião de ver, os vários familiares, chamados pouco a pouco para o ajudarem, os mesmos olhos azuis, a mesma hospitalidade simples do pão acabado de cozer e do queijo caseiro postos em cima da mesa, no mesmo sorriso confiante de quem sabe o que quer e o que está a fazer. De quem sabe que está a construir o futuro com as mãos , um futuro que está ganho se depender exclusivamente da abnegação, coragem, desprendimento e trabalho incessante, espírito de sacrifício nascido no intrínseco amor à terra, o mais velho e nobre sentimento humano.
Que esta seja a minha homenagem póstuma a um Homem, com letra maiúscula, um dos fundadores do Moçambique de hoje.
Grande na sua humildade, porque só as almas grandes sabem verdadeiramente ser humildes.
- Á memória de Américo Colaço Felizardo por Maria do Carmo Abecassis -