08/10/07

Foto: John

A Invenção do Amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares, à porta dos edifícios públicos, nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrina da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor.

Em letras enormes, do tamanho do medo, da solidão, da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva,
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência,
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana.

Um homem e uma mulher,
que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis.
Apenas o silêncio. A descoberta. A estranheza de um sorriso natural e inesperado.

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna.
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente,
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta,
de um amor subitamente imperativo.

Um homem e uma mulher.
Um cartaz denuncia colado em todas as esquinas da cidade.
A rádio já falou, a TV anuncia iminente a captura.
A policia de costumes avisada, procura os dois amantes nos becos e nas avenidas.
Onde houver uma flor rubra e essencial,
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo.
É preciso encontrá-los antes que seja tarde.
Antes que o exemplo frutifique.
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia.

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos.
Chamem as tropas aquarteladas na província.
Convoquem os reservistas, os bombeiros, os elementos da defesa passiva.
Todos! Decrete-se a lei marcial com todas as consequências.
O perigo justifica-o.
Um homem e uma mulher
conheceram-se, amaram-se, perderam-se no labirinto da cidade.

É indispensável encontrá-los, dominá-los, convencê-los,
antes que seja tarde e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas.

Fechem as escolas.
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio,
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram.
Segundo o director da sua escola, é um pequeno triste
inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão.
Aplicado no entanto. Respeitador da disciplina.
Um caso típico de inadaptação congénita, disseram psicólogos.
Ainda bem que se revelou a tempo.
Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação.
Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença.
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade.

Está em jogo o destino da civilização que construímos,
o destino das máquinas, das bombas de hidrogénio, das normas de discriminação racial,
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos,
a verdade incontroversa das declarações políticas.

É possível que cantem, mas defendam-se de entender a sua voz.
Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos,
o rosto banhado de lágrimas.
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra,
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz,
lhe lembravam a infância, campos verdes floridos.
Água simples correndo. A brisa das montanhas.
Foi condenado à morte é evidente.
É preciso evitar um mal maior.
Mas caminhou cantando para o muro da execução,
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um mistério halo de uma felicidade incorrupta.

Procurem a mulher, o homem que num bar de hotel
se encontraram numa tarde de chuva.
Se tanto for preciso, estabeleçam barricadas,
senhas, salvo-condutos, horas de recolher,
censura prévia à Imprensa, tribunais de excepção.
Para bem da cidade, da país, da cultura,
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência.

Os jornais da manhã publicam a notícia,
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena, debruada de acácias.
Um velho sem família, a testemunha diz
ter sentido de súbito, uma estranha paz interior,
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua.

- Daniel Filipe -