26/01/06

Desmentido

Se te disserem que parti, não acredites.
Quem? Sei lá! A senhora da mercearia entregando o troco, algum puto reguila que espere a teu lado o verde para atacar a passadeira, a locutora de seios fartos e neurónios raquíticos do programa da manhã, uma daquelas "amigas" que se esquecem de assinar as cartas ou pousam o auscultador antes de dizerem o nome. Sei lá...
Não acredites.
É verdade que o silêncio invadiu a nossa vida, já não me lembro de conversarmos. Pior!, já não me lembro se algum dia o fizemos. Hoje falamos. Pouco. Esgrimimos as palavras indispensáveis ao bom andamento das refeições, à partilha equitativa da televisão - quando não te refugias no quarto com a portátil - ao ingresso matinal sem atropelos no quarto de banho. Extra-muros restam as de circunstância nas visitas às respectivas famílias e no almoço de curso, durante o qual sempre nos dedicam um brinde por sermos o casal perfeito da nossa geração. É pouco. Mas chega. Aposto que pensas o mesmo, há anos que te não ouço protesto ou remoque. Ultimamente, creio mesmo termos descido mais um degrau nesta ascese comunicativa, ambos utilizamos com frequência o grunhido como resposta, apenas a entoação dá a entender o seu significado. E funciona! (Vantagens de uma longa convivência...) Mas poderão insinuar que parti em busca de companhia que me desate a língua e ressuscite os ouvidos que para ti entraram em greve sine die.
Não acredites.
É verdade que os corpos seguiram as palavras. Primeiro refugiados num sexo mecânico e estereotipado em noites de dias certos. Não digo ineficaz, essa história sobre a necessidade do amor e da comunicação é balela de filmes românticos e especialistas gananciosos; uma vez aprendidos movimentos e ritmos, o prazer físico salta como o joelho no reflexo rotuliano, esteja a cabeça vazia ou cheia de outra pessoa. Sim, outra pessoa, nunca tu disse. A princípio escondia-o, depois nunca estive tão furioso que desejasse lançar-to à cara. Nada de importante, uma colega do escritório. Colega? Que exagero! Umas pernas elegantes cruzadas na secretária junto à minha, a saia trepava apenas o suficiente para exasperar a carne, o mesmo acontecendo às profundezas do decote, o cabelo à Veronica Lake escondia-lhe a cara. Melhor, nunca desejei a intimidade de uma troca de olhares, muito menos "bons dias" sugestivamente alegres ou despedidas de prometedora melancolia ao fim da tarde. Tinha dela o que precisava. O resto só poderia ser uma desilusão ou o princípio de uma carga de trabalhos, passado o entusiasmo inicial essas histórias clandestinas são de um ridículo atroz. Colava a sua imagem à tua face, quando ainda era necessário obrigar o corpo a fingir de quando em vez. Felizmente, hoje o sexo também se esconde por trás de grunhidos e monossílabos, tu vais para a cama cedo ou sofres de enxaqueca, eu refugio-me na net ou no clube de bridge. Manobras de esquiva inúteis, nenhum de nós já espera nada, um dia destes passo para o quarto dos rapazes. (Quanto à importância do sexo, considero-a sobreavaliada, a masturbação chega-me perfeitamente para relaxar e adormecer.) Mas admito que sussurrem ter partido a reboque de alguma paixão outonal.
Não acredites.
É verdade que ao pôr a hipótese de invadir o quatro dos rapazes me assalta uma tristeza enorme, a casa parece - e está! - vazia sem eles.
Acho que foram uma no man's land entre nós, encontrávamo-nos os quatro algures entre as trincheiras desta mútua indiferença. E o armistício era de boa fé, dos seus risos sobravam alguns estilhaços que recolhíamos sem esperança ou rancor. As preocupações da moda com os adolescentes não nos punham ombro a ombro, mas pelo menos cruzando os dedos no mesmo exorcismo às drogas, acidentes de viação e fracassos escolares. Se um dia aparecerem, não acredito que tal aconteça com os netos, não voltaremos a estender os braços um para o outro, nem mesmo para segurar um bebé. Dito isto, é possível que digam ter eu esperado a sua partida para também fazer as malas.
Não acredites.
Vou simplesmente passar o dia à quinta, gosto de a saborear sem o peso da minha solidão reflectida na tua. Estarei em casa - como e para sempre... - à hora de jantar.

- Júlio Machado Vaz -